O tordilho batia cascos num trote largo que, às vezes,
quase virava em galope...
Era sempre assim.
O cavalo e ele sabiam de cor e salteado o caminho de volta aos pagos.
Por vezes, parecia até que o matungo adivinhava seus pensamentos:
O rumo do rancho, ao pé do cerro grande.
O abraço da china velha, largo em saudade.
O amor sem idade, no coração feliz. O alvoroço dos piás,
catando caramelos nos bolsos fundos das suas bombachas.
A festa dos cuscos das casas, lhe esperando na porteira.
As lembranças batiam cascos num trote largo que, às vezes, quase virava
em galope... Finado Amarante, antes de se tornar
finado, era tropeiro. Diz que dos mais afamados daquelas bandas, desde
o arroio Ibirocai até a costa do Toropasso. Na verdade, era apenas
mais um em terra de muitos e bons tropeiros. Sabia disso, mas gostava
por demais da sua lida. Nunca extraviara um bicho sequer em anos e
anos de idas e vindas tocando tropas por diante. A china velha,
zelosa, volta e meia rezingava com ele dizendo que tinha mais cuidados
com o gado do que com ele próprio. Mas, esse era o seu trabalho e isso
era a sua vida. E nem sol de fogo ou chuva de pedra. Nem seca braba ou
enchente grande. Nada detinha sua sina de entregar a tropa ao dono,
gorda e sã de lombo. Pois, mais do que seu ofício, era sua obrigação!
O orgulho batia cascos num trote largo que, às vezes,
quase virava em galope... Finado Amarante, antes de se
tornar finado, acostumara-se à rotina das tropas. Ao ritual chucro das
reses. Ao berro triste do gado. Nunca fizera outra coisa em seus
cinqüenta e pico de anos. Mas, esse era o seu mundo e só assim era
feliz. Tropa entregue no destino e mais uma missão cumprida.
"No mas", era dar de rédeas ao tordilho e repisar o caminho de volta ao
aconchego dos seus, qual ave voltando ao ninho. O rumo do rancho.
O abraço da china. O alvoroço dos piás. A festa dos cuscos.
A saudade batia cascos num trote largo que, às vezes, quase virava
em galope... Agora, mais uma vez, voltara a ser patrão
do seu tempo. A chuvarada de ontem transformara-se em garoazita de
molhar bobo. E bueno, ele e o tordilho já eram vaqueanos dessas
cruzadas de varar enchente a nado. Os dois conheciam bem os segredos e
mistérios dos arroios da querência. Artérias pulsantes da pampa,
serpenteando pelos campos, matando sede de bicho e gente, cumprindo
sua singela sina de levar vida aos rios. Finado
Amarante, antes de se tornar finado, aprendera a respeitar os arroios
para assim poder vencê-los. Sabia bem onde morava o perigo dos
redemoinhos e seus abraços traiçoeiros. Os mapas das correntezas com
seus atalhos profundos e seus caprichos fatais. Conhecia cada arroio
da querência como a palma calejada da sua mão. Naquele mesmo dia, já
bandeara o Carumbé e suas tantas armadilhas feitas de pedras e águas.
Já cruzara o Pindaí - um fiapo d'água nas seca, mas um gigante na
enchente - que sabe se fingir de manso para afogar um vivente.
Só lhe faltava varar o velho arroio Toropasso. Com seu Passo
do Lajeado estrebuchando de água. Despontando além do mato. Furioso,
invadindo campos. Voraz, devorando cercas. Na força da correnteza a
mesma força da tropa. O arroio era o tropeiro!
A enchente batia cascos num trote largo que, às vezes, quase virava em
galope... Pensou em apear do pingo e esperar mais um
pouco. Pitar um ou dois palheiros, até as águas se amansarem.
Total, já estava tão perto e o rancho era logo ali. Ah! Mas a saudade foi
mais forte do que o medo da enchente... Mal convidou o tordilho e já
se meteram n'água, velhos parceiros que eram de varar arroio a nado e
sair do outro sem nem molhar os pelegos! A enchente
batia cascos num trote largo que, às vezes, quase virava em galope...
Uns dizem que foi descuido. Outros, que foi coragem
demais. E alguns até condenaram as águas do Toropasso onde o finado
Amarante de saudade se afogou. Restou a cruz de madeira no Passo do
Lajeado, meio escondida na sombra dos espinilhos e touceiras de
unha-de-gato, lembrando o último duelo entre o arroio e o tropeiro,
num fim de tarde de Agosto. E até hoje, somente a
china velha com seu coração de viúva sabe, mais do que ninguém, que o
arroio não teve culpa.