A entrevista


Dias atrás, no cumprimento do meu dever, tive que visitar a loja

Daslu, para recolher uma encomenda.

Encostei a moto no local de carga e descarga, aos fundos da loja, com

quatro guardas munidos de radio-receptor.

Aguardei 30 minutos a chegada de uma madame, e nada.

Pedi ao guarda ligar para ela, porque nós, simples mortais, a serviço

em duas rodas não temos o direito de ir falar pessoalmente com os

donos das lojas.

Ai ela respondeu para esperar cinco minutos, que já vinha.

Passaram mais 40 minutos e nada.

Enquanto isso, assistia belos carros importados, Mercedes Benz que

nunca tinha visto antes.

E também belas moças, uma mais bonita que outra.

Comentei com um guardinha que se mostrou simpático, -Belos carros heim?

Ele respondeu, -Isso não é nada, não esqueça que vc está na portaria

dos funcionários, tudo que passa por aqui são empregados.

-Nossa!!! Exclamei, e como são então os carros dos clientes?

Ele respondeu: -Muito melhores!!!

Também reparei que entre tantas moças bonitas, todas funcionárias, não

tinha nenhuma de cor, nada de mulatas nem negrinhas.

Já imaginava que isto seria assim, e de uma forma bem descarada.

Restos da escravatura que ainda vivem latentes em nosso Brasil.

Os brancos da Hight Society que não aceitam serem atendidos por

negros, ainda seus escravos, no inconsciente de muitos.

A escravatura foi abolida no papel, mas não de fato. Ainda permanece

viva na consciência de muitos seres, principalmente daqueles que nadam

na opulência, e seus ancestrais mantinham uma grande população de

escravos.

Tem tradições que se transmitem nos genes, se herdam.

A escravidão está latente ainda na cabeça de muitos seres humanos, e o

pior, que se orgulham disso.

Uma lei não foi suficiente para apagar os traços daninhos que se

acumularam por séculos na alma e no coração de muitos.

Não me senti chateado nem inferior pelo que vi, se essa era a intenção

dos organizadores desta parafernália toda, no fim sou um trabalhador,

de origem humilde, “sem parentes importantes no exterior”

Até trabalhei na fera para comprar o meu pão, acordei de madrugada

para vender balas no trem.

Depois de mais de uma hora e tanto, avisei a firma que estava indo

embora, que a dona não se prontificou em me atender.

Com certeza que quando avisaram a ela via radio que o motoboy a estava

esperando, não se dignou em me dar atenção. Era como se um cachorro

estivesse passando.



Só que antes de me marchar, perguntei pro carinha legal, o guardinha,

se tinham algum departamento que contratava motoboy, porque para

ganhar dinheiro, é melhor trabalhar para um rico do que para dez

pobres.

A experiência já me ensinou isto, mesmo sendo um fato lamentável.



Ele disse-me que existia um departamento que administra as cinqüenta

lojas existentes e os mais de mil funcionários.

É uma agência interna, contratada, com toda aparência de estrangeira.

Eu fui lá, me apresentei e marquei uma entrevista para daqui uns dias.

No dia marcado me apresentei.

Uma branquela com ares de dona do mundo me atendeu e perguntou:

-Vaga para motoboy o Sr. procura?

-Sim madame isso mesmo.

-Vou-lhe por em contato com o nosso diretor de RH, o Sr Hermannn, e

desde já lhe antecipo que não são convenientes palavras de baixo calão

nem linguajar chulo, ele não aceita.

Ela pensou rápido, com esta minha profissão, que outra coisa se poderia esperar?

Está muito mal conceituada esta minha raça, nunca ela imaginaria que

eu escrevo no Boteco do balaio e me relaciono com pessoas pra lá de

cultas e inteligentes.



-Bom dia Sr. Hermann, prazer em conhece-lo!!

-Pode sentar, replicou sem olhar para o meu rosto.

Vamos preencher esta ficha, já tenho alguns dos seus dados aqui

comigo, deixa ver, só faltam alguns detalhes que a secretaria não

completou.

O seu grau de instrução?

-Pra lá de bom senhor.

-Formado no exterior?

-Não senhor, no interior mesmo, na faculdade da vida.

-Vamos ver outros detalhes.........sexo...........

-Uma vez por semana senhor.

-Não, não me referia a esse motivo.

Falando nisso, este questionário é extremamente sigiloso, fique tranqüilo.

Então como definiria o seu comportamento sexual, hetero, bi,

metrosexual, ou algum outro?

-Nessa vou de metro senhor!!

O cara que parecia alimentado a milk shake aplicado direto na veia, me

olhou com olhar arregalado de espanto, com essa sua cara branca que

nem bum bum de alemão.

O seu semblante anglo-saxônico estava cada vez mais exasperante.

-A sua religião?

-Não tenho ainda.

-Não faz mal, eu também não.

-É o que imaginei.

-Algum parente de cor, homossexual, alguém já foi preso em sua família?

Então explodi, essa pergunta era a gota que faltava para derramar o

meu copo e destilar o meu veneno.

-O que é que é isso? Uma brincadeira? Cadê as câmeras filmando, estão

à minha frente ou nas minhas costas?

Ai entendi, mais um tatu querendo me levar para o buraco.

Nesse preciso instante afundaram as minhas esperanças de me dar bem

com o sujeito e com a firma.

-Isso é relevante Sr. Hermann? Sim, eu sou branco mas, tenho o coração

de um preto.

-Como assim Sr. Enrique?

-Porque eu clamo pela liberdade, ou seja, a falta dela.

Ele disse: -O Sr. deveria entender que existem questões que são

fundamentais em nossa organização!

-O que é fundamental?

Fundamental é o amor aos seus semelhantes, ajudar ao próximo, a

convivência sem ódio nem preconceito.

Reclamo sim de vocês todos, que com o dinheiro que tem, não

conseguiram derrubar os muros da hipocrisia, da intolerância.

O senhor, com seu sotaque que parece mais o braço direito de Hitler,

uns dos que escaparam da punição, quer me ensinar o que é

“socialmente” aceito nesta sua firma?

O meu desejo agora é de fazer cocô bem aqui no meio desta sala.

Só não faço porque não estou com vontade.

E pode marcar ai no seu relatório, tenho quatorze cachorros PRETOS.

Tenho vários amigos da mesma cor.

E o Sr. também tem algo preto, a menos que o tenha pintado de branco.



-Sr. Enrique a nossa conversa está finalizada, pode-se retirar!!!

-Engano seu, a nossa conversa acabou desde o primeiro instante, quando

entrei por esta porta e lhe vi.



E pode aguardar mister Hermann que vou lhe trazer uma placa de

presente para pendurar em sua porta de entrada:

WHITE, WHITE & WHITE – THE BIG FDP.



Nesse mesmo instante tirei o meu blusão e mostrei a frente da minha

camiseta, escrito assim:

TEM UM CORNO ME OLHANDO!!

Quando virei de costas, não antes de reparar no olhar fulminante de

ódio dele, podia –se ler: E AINDA CONTINUA ME OLHANDO!!



Uma forte batida de porta encerrou a nossa entrevista e a minha

intenção de querer trabalhar com gente fina e sem alma.

Quem planta ventos, recolhe tempestades!!!



PRÓ INFERNO O ÓDIO RACIAL E O PRECONCEITO!!!



Por coincidência mesmo, quando sai, a secretaria me disse:

-Eu ouvi toda essa conversa, e gravei tudo, hehehe.



No terceiro dia recebi um e-mail:

Caro Sr. Enrique, solicitamos gentilmente a sua presença para

tratarmos assunto do seu interesse.

Assinado, Sr. Nicholas Jackson, Gerente de RH



Bem, parece que o Sr. Hermann se deu mal, dançou miudinho, sem música mesmo.



Vocês foram ao encontro?



Nem eu.