Amarildo, o último dos otimistas.

Em 11/10/07 tive a intenção de me iniciar como escritor de Contos
Bem, é o início, sejam tolerantes. Poderia ser pior (será?)



Conto
A hilária vida de Amarildo sempre foi engraçada, cheia de anedotas, vivia num mar de azares, mas nem por isso perdia a compostura, a sua fé e o seu otimismo, foi um modelo a ser seguido.
Ele nunca esteve deprimido, dizia que sempre viria um amanhã melhor, e não é que ele acreditava mesmo nisso?
Algo vetusto no seu comportamento, obedecendo ao formato rígido dos seus progenitores. Mesmo assim não parava de encorajar os outros.
Conta a sua filha Jacinta, que quando pequena uma vez o acompanhou ao estádio Pacaembu para ver uma final de campeonato, um clássico São Paulo e Corinthians quando no meio do jogo o seu pai foi sorteado pela infeliz escolha de uma pomba que decidiu defecar encima da cabeça do azarado Amarildo. Jacinta diz que comentou:- Pai, com cinqüenta mil espectadores, vinte e dois jogadores, quatro bandeirinhas, um juiz e a pomba veio a fazer cocô bem na sua cabeça? Aí foi que Amarildo demonstrando toda a sua maturidade emocional e mantendo a máxima calma e compostura possível nessa ridícula situação, respondeu a sua filha:- Veja bem Jacinta, eu sou um homem tremendamente afortunado. Você faz uma idéia do que teria acontecido se as vacas voassem?
Sem dúvida que o seu entusiasmo para resolver os problemas era contagiante.
Agora o seu fim foi trágico, quem sabe foi da forma que ele sempre tinha preferido, rápida e indolor.
Com sessenta e cinco anos nas costas, onde foi dez anos cabo do exército, máximo galardão que conseguiu na vida, funcionário dos correios o restante. Sempre mamando em conta-gotas das tetas do estado.
Uma quinta feira viu um anúncio que precisavam porteiro/office-boy aposentado, obviamente para não pagar condução, e tomou uma decisão, no outro dia sairia cedo de casa para tentar esse emprego. Enfim, engordar uma mísera aposentadoria que só dava pra remédios seria ótimo, quem sabe daria para tomar as suas cervejinhas e pagar a vista.
Sexta feira sete da manhã Amarildo sai correndo de casa só com um café mal tomado, seu terno vinte único Calvin Caca-Klain e chapéu panamá, herança do seu avô, entra no seu fusca mil novecentos setenta e algo, quatro pneus careca como bunda de nenê, cor indefinida, e sai voando a trinta quilômetros por hora. A lataria era idêntica aos daqueles carros do Iraque quando detonados por um suicida, mas ele tinha que arriscar, se aparece-se um bem-te-vi o caso era resolver no gogó. No meio do caminho estoura o pneu dianteiro, começa ziguezaguear , com as lonas dos freios no osso, quem ajuda mesmo a parar rápido e uma árvore centenária. Resultado: o pára-choque dianteiro foi pras cucuias, a lataria parece que ficou melhor do que estava antes e por sorte nenhum ferimento. Amarildo desce do carro e quando põe o pé esquerdo no chão apóia suavemente em algo macio, como um tapete persa, mas muito mal cheiroso. Era o serviço de algum cachorrão que na falta de um dono educado deixou na calçada a sua assinatura, a sua marca registrada em forma de uma montanha de estrume. Observa atento Amarildo àquele sapato que há quinze anos lhe acompanha sempre seminovo, só utilizado para ocasiões especiais, que mudou repentinamente de cor e de cheiro. Ficou algo parecido com Aromas do Pântano ou Essência do Necrotério, algo espantoso. Mesmo assim não se incomoda, pensa: pelo menos o outro sapato está em bom estado. Sem macaco para auxiliá-lo nem estepe, já viram esses apetrechos num fusca velho? Decide continuar o resto do caminho a pé. Não antes de passar por debaixo da escada de um pintor que lhe joga umas gotas de látex amarelo. Amarildo olha pro terno e não desanima, pensa que um terno roxo com pingos amarelos dá um tom diferente, mais moderno e vai em frente. Chegando à rua onde estaria seu possível emprego, Amarildo repara que deixou o papel com o número da rua em outra calça. Não tem jeito, fica rodando que nem cego na feira até desistir e rumar de volta pra casa a pé. Chegando à sua rua, cansado, mas não derrotado, pois nada desanima esse lutador, passa no empório do Juvenal, seu velho amigo e vizinho que morava no décimo andar no seu mesmo prédio. Pede uma cerveja gelada e enquanto a degusta, Juvenal estende o braço em sua direção e lhe mostra uma velha conta pendurada pela família dele de noventa e sete reais. Amarildo com toda a tranqüilidade do mundo, manchado de tinta, fedendo horrores, pede calma para Juvenal. Isto se solucionará logo mais com o novo emprego, lhe disse.
Chegando em casa a sua mulher abre a porta, pois ele não carrega chaves. Ela o proibiu muitos anos atrás quando ele chegou um dia mais cedo e encontrou-a com um estranho em atitude suspeita, que a muito custo ele teve que engolir que este cara era o seu professor de yoga. Nunca ficou bem esclarecido por que estavam quase sem roupas, mas Amarildo sempre achou que quem ama de verdade deseja o bem do seu conjugue e assim ficou conformado.
Ele pensava:- Alguém viu? Alguém comentou? Não? Então corna é a mãe, não eu. Numa exclamação de felicidade a sua mulherzinha lhe disse:- Adivinha quem veio para ficar o fim de semana em casa? A sua querida sogra!
Amarildo, que preferia levar a vida de Prometeu tendo as suas vísceras devoradas por um corvo gigante diariamente, antes que passar um fim de semana com a sogra, que opinava que seria melhor atravessar os três oceanos a nado do que passear com ela, que afirmava que elevador para o além pra sogra só tinha uma direção: para baixo, deu um sorriso amarelo disfarçado emitindo um som gutural inaudível: - Que bom né?
Fora que já tiveram briga feia quando afirmara tempos atrás que preferia passar vinte e cinco anos debaixo de uma pedra do que escutar dez minutos a voz da sogra.
-Mas que fedentina é essa? Interrogou a sua mulher, - Vai tomar um banho e se perfumar homem de Deus!
Assim feito, resignado e inconsolado Amarildo aproveita depois do banho e sai na sacada pra secar o cabelo no seu vigésimo quinto andar, um “apertamento” alugado por sua filha Jacinta para os pais e o Fido um cãozinho de estimação. Aproveita para respirar o límpido ar das alturas da zona leste de São Paulo.
Encostado de barriga na sacada não percebe a aproximação da sogra que de pronto aparece e exclama a toda voz: - OI AMARILDO!!
Pronto! Isto foi o suficiente para derrubar o coitado da sacada e submergi-lo no espaço.
Ninguém nunca saberá a verdade se ele caiu ou se jogou de propósito.
Só sabemos pelo seu Juvenal, que casualmente estava na sacada nesse trágico instante e viu o infeliz descendo a duzentos quilômetros por hora.
Ainda o Juvenal mão de vaca e insensível, vendo seu amigo se precipitar para uma morte certa, no puro instinto comercial ele esticou o braço com um papel na mão dizendo rapidamente:- Amarildo, a tua conta ô! Que ouve?
Ele contou depois que só ouviu uma rápida frase dizendo: - Por enquanto está tudo beeeeeeem! Pobre Amarildo, otimista até na hora de sua morte, Amém.